Espaço Bizarro - Naked Lunch (1991)

De: David Cronenberg 
Com: Peter Weller, Judy Davis, Ian Holm
“Naked Lunch” permanece a mais notória realização do desconexo e marginal William S. Burroughs. Escrito ao longo de parte significativa da década de ’50, foi pela primeira vez publicado em Paris em 1959. Referencial  pela obscenidade e perversidade associadas às narrativas que o integram,  “Naked Lunch” encontra na reversibilidade que (des)articula os seus capítulos, num “não-final” e na expressão do surrealismo e do absurdo – resultantes, em grande medida, do consumo de um delirante leque de drogas – manifestações de genialidade que o consagraram enquanto obra literária de incontornável relevância na História da Literatura Norte-Americana moderna. Depois de uma ambiciosa adaptação com contornos surpreendentes, David Cronenberg realizou, em 1991, o seu “Festim Nú”. Com o valioso agrément de Burroughs, que à data contava com 77 anos de idade.
Em “Naked Lunch”, Cronenberg não se contentou em representar o caótico imaginário literário de Burroughs: Do seu exercício resultou um périplo rico e competente por parte significante da vida e das sensações do próprio William Burroughs. De um contexto cultural anos '50, explicitamente “beat generation”, sobressai uma “surrealidade” de cariz persecutório, na qual espaços e atmosfera são intencionalmente saturados e claustrofóbicos, pautada pelo delírio, pela hipocrisia da generalidade dos personagens e por uma inconsciência global de contornos ambíguos. A William Lee (personagem principal protagonizado por Peter Weller e pseudónimo de Burroughs) permanece apenso um comportamento desprovido de emoção ou de alegria. Da sua insatisfação e frieza, quase sempre permanentes, emergem a incapacidade de lidar com questões como a toxicodependência, a sexualidade (em mutação) ou com uma realização intelectual insuficiente. São múltiplas as referências a uma homossexualidade condicionada, à fruição recorrente de heroína e a um comportamento ciclóide, oscilando entre o passivo e o paranóico.
O consumo intravenoso de insecticida amarelo para rastejantes, que tinge o “Festim Nú” de tons sépia, surge, numa óptica assumidamente superficial, enquanto principal responsável para quase tudo o que sucede: A vida de Burroughs foi bastante mais complexa do que aquilo que uma dependência tende a acarretar, mas com efeito, o assassínio acidental da sua mulher e amiga Joan Vollmer (aqui retratada em Joan Lee, interpretada por Judy Davis), com quem mantinha uma incompreendida e intensa relação intelectual, terá ocorrido num contexto de consumo de droga. À fatalidade, única pelos contornos medievalescos que teve – Burroughs contactou com armas de fogo desde criança – corresponde uma “charneira” de óbvia importância na intriga de Cronenberg. William Lee passa de escritor erótico anónimo e de assalariado a agente secreto; abandona New York e sedia-se numa urbe norte-africana, num território chamado “interzone”; deixa de estar rodeado por baratas e por miriápodes, passando a lidar com “metamorfos” de escala e identidade superiores; passa a adoptar comportamentos e fantasias homossexuais, ainda que associadas a momentos onde a consciência e a inconsciência parecem disputar os seus sentidos

A escrita e o processo criativo acompanham o desenrolar dos factos. Fazem-no de uma forma  magistral, incorporando um sentido kafkiano de metamorfose e integrando o peso do que é a consciência crítica de um autor, não deixando de parte o imaginário, mais ou menos libidinoso, do próprio William Burroughs (que, refira-se, utilizou uma  máquina de escrever portátil aquando do términus do seu “Naked Lunch”).
Nem sempre ao arrojo tem de corresponder luz. E David Cronenberg atingiu-o, numa toada permanentemente lúgubre, derrotista e melancólica. “Naked Lunch” não é um filme fácil, sendo ainda hoje mal-amado pela crítica por ser hermético na sua significância, por representar um surrealismo (de estética excêntrica) de uma forma pesada, maquinal e analítica, por retratar um asfixiante naipe de sensações, e por propor, à imagem da obra de Burroughs, um final aberto.
Marco na história do cinema e da estética do bizarro, “Naked Lunch” não correspondeu apenas à consagração de Cronenberg: A prestação de Peter Weller é brilhante – não fosse o “Festim Nú” um filme contra-corrente, o Genie Award que recebeu saberia a muito pouco – e Judy Davis encarna, na perfeição, o espírito da genial Joan Vollmer. Sub-valorizado até pelo chamado “circuito alternativo”, “Naked Lunch” não venceu o título de “melhor filme” em nenhum dos certames em que marcou presença.

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