Crítica - Mulan (1998)

Realizado por Tony Bancroft e Barry Cook
Com Eddie Murphy, Ming-Na Wen, Harvey Fierstein, Matthew Wilder, Pat Morita

A imagem de donzela em apuros tão típica da Disney nos seus inícios teve de evoluir e acompanhar os tempos. A princesa frágil esperando o seu príncipe encantado, que ora dorme durante a puberdade ora tem ajuda de magia e fadas-madrinhas para realizar os seus sonhos teve de evoluir. A donzela já não quer ser salva, quer salvar-se a ela própria. Já não quer ser feliz para sempre, quer sim encontrar mundos fora do seu mundo, quer conquistar o seu lugar ao sol, quer encontrar a sua razão de ser. “A Pequena Sereia” (1989) começou a mostrar o lado rebelde da princesa, o não conformismo, o não se contentar com o que se tem, seguida por Belle (“A Bela e o Monstro”, 1991), a rapariga de campo que se recusa peremptoriamente a aceitar uma vida chata e sempre igual junto de um homem oco e absurdo. Jasmine em “Aladino” (1992) renega a sua posição privilegiada de filha do sultão enquanto o povo morre à fome e “Pocahontas” (1995), espírito indomável e igualmente inconformista, é a primeira princesa a escolher o seu povo e o seu dever ao seu amor. Por fim, Meg (“Hércules”, 1997), a rapariga que não acredita no amor. Todas elas são antepassadas de Mulan, todas elas lutando contra o enclausuramento a que a sociedade e a cultura exigiram e exigem ao sexo feminino, todas elas tentando fugir do destino que parecia tão agradável a Branca de Neve, Cinderela ou Bela Adormecida. As mulheres da Disney vêm ganhando densidade, consistência e firmeza ao longo dos tempos e Mulan é provavelmente o expoente máximo da emancipação feminina na Disney.
Baseada numa lenda chinesa, “Mulan” conta a história de uma rapariga com o mesmo nome numa época conturbada do Império Chinês em plena batalha contra os Hunos. Quando estes conseguem atravessar a Grande Muralha, o Imperador exige que cada família envie um homem para a guerra. Sendo filha única, é o pai de Mulan, velho e já com mazelas de combate, que tem de partir. Depois de desonrar a sua família com um encontro desastroso com a casamenteira da aldeia, Mulan resolve tomar o lugar do seu pai, mascarando-se de soldado e ingressando no exército. Na sua demanda, vai ter como ajudantes um grilo quase falante, um dragão despromovido demasiado falante, enviado por engano pelos seus antepassados, e um fiel cavalo.


Como todos os argumentos Disney, este apresenta consistência e complexidade, levando-nos numa viagem a um tempo e um lugar perdidos para nos falar de uma personagem forte e palpável, deslocada desse mesmo tempo e desse mesmo espaço. Numa época em que o papel da mulher se limitava a ter filhos varões, uma rapariga com dois palmos de testa estava condenada a uma vida incompleta e sofrida. O ritual da passagem pela casamenteira que abre o filme e o total fracasso de Mulan em tentar demonstrar-se obediente e autómata ilustra na perfeição o desenquadramento desta personagem e a injustiça que é a alegria e vontade própria serem motivos de desonra e vergonha para a sua família. É com este sentimento de fracasso enquanto filha, com o desejo de ser mais, a necessidade de mostrar o seu valor, o seu ser completamente dividido entre aquilo que é e aquilo que a sociedade exige que seja, que Mulan parte para a recruta mascarada de soldado. Inicialmente humilhada pelos seus companheiros e descartada como quase demente, Mulan vai conquistando respeito e admiração através da sua inteligência e empenho, acabando por ultrapassar os seus colegas em arte e engenho, cada um com um ideal diferente de mulher mas igualmente oco.


Neste trajecto para se encontrar a si própria, Mulan tem a preciosa, se bem que por vezes inoportuna, ajuda de Mushu, o seu dragão pessoal, enviado para a guiar (por engano) mas tão perdido quanto ela quanto ao seu papel e ao seu valor. Mushu (voz de Eddie Murphy) é o principal elemento cómico da história, e embora nos faça rir à gargalhada, ao fim e ao cabo torna-se demasiado porque acaba por roubar o protagonismo à heroína e diluir a espessura e impacto do argumento. Ansiando por mostrar a sua capacidade enquanto guia espiritual de um guerreiro, é o impulsionador para o confronto com os Hunos, que leva a grandes feitos por parte de Mulan mas também ao seu desmascaramento, a partir do que nos lembramos que estamos perante um filme Disney. O capitão sente-se enganado mas deixa-a ir em liberdade, e quando ela regressa com a notícia de que os Hunos estão de volta, o respeito e admiração por parte dos soldados mantém-se e seguem-na, abraçando sem pudor o seu lado feminino, atingindo o clímax numa homenagem do Imperador e do povo chinês que roça o épico.


Mas se não dermos demasiada importância a este factor conto de fadas (como se o dragão mágico não bastasse), estamos perante uma fábula inteligente e emocionante, com uma direcção artística muito interessante, que usa os desbotares e as cores vívidas das pinturas chinesas para colorir este mundo e contrastando cores escuras e ocres para os cenários de guerra, conferindo-lhe um aspecto muito especial. Aborda de uma maneira leve a discriminação sexual cultural e as diferenças entre os sexos, mas sobretudo sobre a importância de respeitar sem olhar a quem e valorizar a força do intelecto e não o género. E, claro, tema recorrente nos filmes Disney, o que importa é o interior e não o exterior. Fala também, de um modo muito idealista, do percurso que fazemos para nos conhecermos e aceitarmos como somos e que isso é suficiente para que os outros nos aceitem também.


Classificação - 4 Estrelas Em 5

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